terça-feira, 7 de outubro de 2014

Um texto de Marilena Chauí para entender o atraso cultural, intelectual e moral dos brasileiros, especialmente dos paulistas


O excerto abaixo fez parte de uma conferência ministrada em Salvador, Bahia, em 11 de novembro de 2007. Marilena Chauí aborda questões expostas em seu livro "Cultura e democracia: discurso competente e outras falas (Cortez, 2007)". Este artigo, infelizmente, é mais atual do que nunca. Agora que SP mais uma vez se lambuza na lama do fascismo, as pessoas minimamente conscientes precisam reforçar sua consciência crítica, e procurar entender as origens de nosso atraso enquanto civilização.  


IV

O que é a sociedade brasileira enquanto sociedade autoritária? É uma sociedade que conheceu a cidadania através de uma figura inédita: o senhor (de escravos)-cidadão, e que concebe a cidadania com privilégio de classe, fazendo-a ser uma concessão da classe dominante às demais classes sociais, podendo ser-lhes  retirada quando os dominantes assim o decidirem. É uma sociedade na qual as diferenças e assimetrias sociais e pessoais são imediatamente transformadas em desigualdades, e estas, em relação de hierarquia, mando e obediência. Os indivíduos se distribuem imediatamente em superiores e inferiores, ainda que alguém superior numa relação possa tornar-se inferior em outras, dependendo dos códigos de  hierarquização que regem as relações sociais e pessoais. Todas as relações tomam a forma da dependência,  da tutela, da concessão e do favor. Isso significa que as pessoas não são vistas, de um lado, como sujeito, autônomas e iguais, e, de outro,  como cidadãs e, portanto, como portadoras de direitos. É exatamente isso que faz a violência ser a regra da vida social e cultural. Violência tanto maior porque invisível sob o paternalismo e o clientelismo,  considerados naturais e, por vezes, exaltados como qualidades positivas do “caráter nacional”. É uma sociedade na qual as leis sempre foram armas para preservar privilégios e o melhor instrumento para a repressão e a opressão, jamais definindo direitos e deveres concretos e compreensíveis para todos. No caso das camadas populares, os direitos são sempre
apresentados como concessão e outorga feitas pelo Estado, dependendo da vontade pessoal ou do arbítrio do governante. 


Essa situação é clara mente reconhecida pelos trabalhadores quando afirmam que “a justiça só existe para os ricos”. Tal situação também forma numa consciência social difusa, que se exprime no dito muito conhecido: “para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei”. Para os grandes, a lei é privilégio;
para as camadas populares, repressão. A lei não figura o pólo público do poder e da regulação dos conflitos, nunca define direitos e deveres dos cidadãos porque, em nosso país, a tarefa da lei é a conservação de privilégios e o exercício da repressão. Por este motivo, as leis aparecem como inócuas, inúteis ou incompreensíveis, feitas para serem transgredidas e não para serem transformadas – situação violenta que é miticamente transformada num traço positivo, quando a transgressão é elogiada como “o jeitinho brasileiro”. O poder judiciário é claramente percebido como distante, secreto, representante dos privilégios das oligarquias e não dos direitos da generalidade social. Nessa sociedade, não existem nem a idéia, nem a prática da representação política autêntica. Os partidos políticos tendem a ser clubes privados das oligarquias locais e regionais, sempre tomam a forma clientelística na qual a relação é de tutela e de favor. É uma sociedade, conseqüentemente, na qual a esfera pública nunca chega a constituir-se como pública, pois é definida sempre e imediatamente pelas exigências do espaço privado, de sorte que a vontade e o arbítrio são as marcas dos governos e das instituições “públicas”. A indistinção entre o público e  privado (a política nasce ao instituir a distinção entre ambos, como vimos) não é uma falha acidental que podemos corrigir, pois é a estrutura do campo social e do campo político que se encontra determinada pela indistinção entre o público e o privado. Essa indistinção é a forma mesma de realização da sociedade e da política: não apenas os governantes  e parlamentares praticam a corrupção sobre os fundos públicos,
mas não há a percepção social de uma esfera pública das opiniões, da sociabilidade coletiva, da rua como espaço comum, assim como não há a percepção dos direitos à privacidade e à intimidade. É uma sociedade na qual as diferenças e assimetrias sociais e pessoais são imediatamente transformadas em desigualdades,
e estas, em relação de hierarquia, mando e obediência. É uma sociedade que por isso bloqueia a esfera pública da opinião como expressão dos interesses e dos direitos de grupos e classes sociais diferenciados e\ou antagônicos. Esse bloqueio não é um vazio ou uma ausência, mas um conjunto de ações determinadas que se traduzem numa maneira determinada de lidar com a esfera da opinião: os mass media monopolizam a informação, e o consenso é confundido com a unanimidade, de sorte que a discordância é posta como
ignorância ou atraso. As disputas pela posse da terra cultivada ou cultivável são resolvidas pelas armas e pelos assassinatos clandestinos. As desigualdades econômicas atingem a proporção do genocídio. Os negros são considerados infantis, ignorantes, raça inferior e perigosa, tanto assim, que numa inscrição gravada até pouco tempo na entrada da Escola de Polícia de São Paulo dizia: “Um negro parado é suspeito; correndo, é culpado”. Os índios, em fase final de extermínio, são considerados irresponsáveis (isto é, incapazes de cidadania), preguiçosos (isto é, maladaptáveis ao mercado de trabalho capitalista), perigosos, devendo ser exterminados ou, então, “civilizados” (isto é, entregues à sanha do mercado de compra e venda de mão-de-obra, mas sem garantias trabalhistas porque “irresponsáveis”). E, ao mesmo tempo, desde o romantismo, a imagem índia é apresentada pela cultura letrada com heróica e épica, fundadora da “raça brasileira”. Os trabalhadores rurais e urbanos são considerados ignorantes, atrasados e perigosos, estando a polícia autorizada a parar qualquer trabalhador nas ruas, exigir a carteira de trabalho e prendê-lo “para averiguação”, caso não esteja carregando identificação profissional (se for negro, além de carteira de trabalho, a polícia está autorizada a examinar-lhe as mãos para verificar se apresentam “sinais de trabalho” e a prendê-lo caso não encontre os supostos “sinais”). Há casos de mulheres que recorrem à Justiça por espancamento ou estupro, e são violentadas nas delegacias de polícia, sendo ali novamente espancadas e estupradas pelas “forças da ordem”. Isto para não falarmos da tortura, nas prisões, de homossexuais,  prostitutas e pequenos criminosos. Numa palavra, as classes populares carregam os estigmas da suspeita, da culpa e da incriminação permanentes. Essa situação é ainda mais aterradora quando nos lembramos de que os instrumentos criados durante a ditadura (1964-1975) para repressão e tortura dos prisioneiros políticos foram transferidos para o tratamento diário da população trabalhadora e que impera uma ideologia segundo a qual a miséria é causa de violência, as classes ditas “desfavorecidas” sendo consideradas potencialmente violentas e criminosas. Preconceito que atinge profundamente os habitantes das favelas, estigmatizados não só pelas classes média e dominante, mas pelos próprios domina dos: a cidade olha a favela como uma realidade patológica, uma doença, uma praga, um quisto, uma calamidade pública. É uma sociedade na qual a população das grandes cidades se divide entre um “centro” e uma “periferia”, o termo periferia sendo usado não apenas no sentido espacial-geográfico, mas social,  designando bairros afastados nos quais estão ausentes todos os serviços básicos (luz, água, esgoto, calçamento, transporte, escola, posto de atendimento médico). Condição, aliás, encontrada no “centro”, isto é, nos bolsões de pobreza, os cortiços e as favelas. População cuja jornada de trabalho, incluindo o tempo gasto em transportes, dura de 14 a 15 horas, e, no caso das mulheres casadas, inclui o serviço doméstico e o cuidado com os filhos.
É uma sociedade na qual a estrutura da terra e a implantação da agroindústria criaram não só o fenômeno da migração, mas figuras novas na paisagem dos campos: os sem-terra, volantes, bóiasfrias, diaristas sem contrato de trabalho e sem as mínimas garantias trabalhistas. Trabalhadores cuja jornada se inicia por volta das três horas da manhã, quando se colocam à beira das estradas à espera de caminhões que irão levá-los ao trabalho, e termina por volta das seis horas da tarde, quando são depositados de volta à beira das estradas, devendo fazer longo trajeto a pé até a casa. Freqüentemente, os caminhões se encontram em péssimas condições e são constantes os acidentes fatais, em que morrem dezenas de trabalhadores, sem que suas famílias recebam qualquer indenização. Pelo contrário, para substituir o morto, um novo membro da família – crianças ou mulheres – é transformado em novo volante. Bóias-frias porque sua única refeição – entre três da manhã e sete da noite – consta de uma ração de arroz, ovo e banana, já frios, pois preparados nas primeiras horas do dia. E nem sempre o trabalhador pode trazer a bóia-fria, e os que não trazem se escondem dos demais, no momento da refeição, humilhados e envergonhados. Por fim, é uma sociedade que não pode tolerar a manifestação explicita das contradições, justamente porque leva as divisões e desigualdades sociais ao limite e não pode aceitá-las de volta, sequer através da rotinização dos “conflitos de interesses” (à maneira das democracias liberais). Pelo contrário, é uma sociedade em que a classe dominante exorciza o horror às contradições produzindo uma ideologia da indivisão e da união nacionais, a qualquer preço. Por isso recusa perceber e trabalhar os conflitos e contradições sociais, econômicas e políticas enquanto tais, uma vez que conflitos e contradições negam a imagem mítica da boa sociedade indivisa, pacífica e ordeira. Contradições e conflitos não são ignorados e sim recebem uma significação precisa: são considerados sinônimo de perigo, crise, desordem e a eles se oferece uma única resposta: a repressão policial e militar, para as camadas populares, e o desprezo condescendente, para os opositores em geral. É uma sociedade em que vigora o fascínio pelos signos de prestígio e de poder, como se observa no uso de títulos honoríficos sem qualquer relação com a possível pertinência de sua atribuição, o caso mais corrente sendo o uso de “Doutor” quando, na relação social, o outro se sente ou é visto como superior (“doutor” é o substituto imaginário para os antigos títulos de nobreza); ou como se observa na importância dada à manutenção de criadagem doméstica cujo número indica aumento de prestígio e de status, etcetera.
A desigualdade salarial entre homens e mulheres, entre brancos e negros, a exploração do trabalho infantil e dos idosos são consideradas normais. A existência dos sem-terra, dos sem-teto, dos desempregados é atribuída à ignorância, à preguiça e à incompetência dos “miseráveis”. A existência de crianças de rua é vista como “tendência natural dos pobres à criminalidade”. Os acidentes de trabalho são imputados à  incompetência e ignorância dos trabalhadores. As mulheres que trabalham (se não forem professoras ou assistentes sociais) são consideradas prostitutas em potencial e as prostitutas, degeneradas,
perversas e criminosas, embora, infelizmente, indispensáveis para conservar a santidade da família.
Em outras palavras, a sociedade brasileira está polarizada entre a carência absoluta das camadas populares e o privilégio absoluto das camadas dominantes e dirigentes, bloqueando a instituição e a consolidação da democracia. De fato, fundada na noção de direitos, a democracia está apta a diferenciá-los de privilégios e carências. Um privilégio é, por definição, algo particular que não pode generalizar-se nem universalizar-se
sem deixar de ser privilégio. Uma carência é uma falta também particular ou específica que desemboca numa demanda também particular ou específica, não conseguindo generalizar-se nem universalizar-se. Um direito, ao contrário de carências e privilégios, não é particular e específico, mas geral e universal, seja porque é o mesmo e válido para todos os indivíduos, grupos e classes sociais, seja porque embora diferenciado é reconhecido por todos (como é caso dos chamados direitos das minorias). Assim, a polarização  econômico-social entre a carência e o privilégio ergue-se como obstáculo à instituição de direitos,  definidora da democracia. Acrescentemos a isso as duas grandes dádivas neoliberais: do lado da economia, uma acumulação do capital que não necessita incorporar mais pessoas ao mercado de trabalho e de consumo, operando com o desemprego estrutural; do lado da política, a privatização do público, isto é, não só o abandono das políticas sociais por parte do Estado, mas também o recrudescimento da estrutura histórica da sociedade brasileira centrada no espaço privado fortalecendo a impossibilidade para que a esfera pública possa constituir-se, pois antes que a distinção entre público e privado tivesse conseguido instituir-se, a nova forma do capital institui a indiferença entre o público e o privado. Política e socialmente, a economia neoliberal é o projeto de encolhimento do espaço público e do alargamento do espaço privado – donde seu caráter essencialmente anti-democrático –, caindo como uma luva na sociedade brasileira.
No caso do Brasil, o neoliberalismo significa: levar ao extremo à polarização carência-privilégio, a exclusão sócio-política das camadas populares, a desorganização da sociedade como massa dos desempregados; aumentar o espaço privado ocupado não apenas pelas grandes corporações econômicas e financeiras, mas também pelo crime organizado, o qual, diante do encolhimento do Estado, pode espraiar-se por toda a sociedade como substituto do Estado (proteção, segurança, emprego, privatização da guerra, privatização do uso da força, etc.); significa solidificar e encontrar novas justificativas para a forma oligárquica da política, para o autoritarismo social e para o bloqueio à democracia. Diante desse quadro, podemos dizer que as políticas sociais de afirmação dos direitos econômicos e sociais, contra o privilégio, e as políticas culturais de afirmação do direito à cultura, contra a exclusão cultural, constituem uma verdadeira revolução democrática no Brasil.


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