segunda-feira, 10 de setembro de 2012

O acirramento da luta de classes às vésperas da ascensão do fascismo na Itália (Parte II)



Marcha sobre Roma, 1922


O acirramento da luta de classes às vésperas da ascensão do fascismo na Itália (Parte II)*

Lênin encarava os processos revolucionários como “aceleração do tempo histórico”, mudanças que deveriam levar décadas, ou até séculos, efetivadas num curto espaço de tempo, pelos agentes revolucionários. Na Itália, o “biênio vermelho” se caracterizou por uma conjuntura desse tipo, tendo no operariado a vanguarda responsável pela luta por profundas mudanças em sua sociedade. O biênio de lutas (1919-1920) foi marcado por uma intensa agitação por parte da classe trabalhadora italiana, que promoveu uma série de greves, culminando com as famosas greves com ocupação de fábrica e controle da produção. O proletariado esteve na ofensiva, mesmo no conservador meio rural os trabalhadores começaram a se mobilizar para lutar contra o latifúndio. O centro da Revolução foi Turim, base da corrente ordinovista do PSI.
A galvanizar a situação toda uma vaga internacional revolucionária, tendo a frente a União Soviética, seguida do exemplo da República dos Conselhos da Hungria, dos espartaquistas alemães, da Viena Vermelha. Não obstante, a social-democracia italiana, seguindo as diretrizes da II Internacional, não encampou os ímpetos revolucionários da classe operária. Isolado, o movimento de ocupação de fábricas ficou restrito a Turim e algumas fábricas de Milão, não se expandindo para o restante do país. O PSI foi responsável pelo cordão de isolamento que restringiu o levante proletário a algumas regiões da península. Anos mais tarde, já na prisão, Gramsci fez uma autocrítica sobre o “biênio vermelho”, afirmando as limitações da classe operária em relação a Itália como um todo, concluindo que um movimento revolucionário efetivo teria que se expandir ao proletariado rural, amparado por um partido forte, com um programa definido e consciente da realidade italiana.
O fato é que a esquerda italiana estava dividida entre várias correntes, com programas distintos e inconciliáveis. Tal panorama levou a um inevitável racha em janeiro de 1921, a esquerda do PSI, composta pelo grupo L'Ordine Nuovo e pela fração abstencionista de Amadeo Bórdiga, também chamado de grupo Il Soviet, periódico da corrente, formou o PCI (Partido Comunista Italiano), referendando as 21 condições da III Internacional. Contudo, o divisionismo esteve presente na nova agremiação desde seus primórdios, representada pelo abstencionismo de Bórdiga, com tonalidades de extrema-esquerda, e os ordinovistas, com uma leitura mais acurada acerca de sua conjuntura. O PSI permaneceu fiel as diretrizes da social-democracia, com seu gradualismo e disposição para o compromisso junto a burguesia.
Enquanto a esquerda se esfacelava, a direita unia forças. A essa altura, fiel ao seu oportunismo, Mussolini já se plasmara como líder de extrema-direita, o periódico Popolo d'Itália, que em princípio vira com bons olhos o movimento de ocupações de fábrica, passara a atacar ferozmente tais iniciativas. No segundo semestre de 1920, um fenômeno novo interveio para reforçar a reação, o fascismo rural, ainda mais selvagem que o urbano. Também é ponto comum entre os pesquisadores que foi de fundamental importância para o avanço do fascismo o apoio das classes produtoras, Antonio Gramsci, o mais arguto observador do período, narrou da seguinte forma o pacto que foi selado entre a burguesia italiana e o fascismo, o relato é esclarecedor:

Em março de 1920, as classes proprietárias começaram a organizar a contra-ofensiva. Em 7 deste mês, reuniu-se em Milão a primeira Conferência Nacional dos Industriais Italianos. No decorrer dessa reunião, foi elaborado um plano preciso e completo para a ação capitalista unificada, no qual tudo estava previsto, desde a organização disciplinada e metódica da classe dos fabricantes e dos comerciantes até o estudo de todos os instrumentos de luta contra os sindicatos operários, até a reabilitação política de Giovanni Giolliti. Nos primeiros dias de abril, a organização obtinha já o seu primeiro sucesso político: o Partido Socialista declarava anarquista e irresponsável a grande greve do Piemonte, que eclodira para defender os comitês de fábrica e para conquistar o controle operário sobre a indústria. O PSI ameaçava dissolver a seção de Turim, que dirigira esta greve. Em 15 de junho, Giolitti formava seu ministério de compromisso com o Estado-Maior, representado por Bonomi, ministro da Guerra. Um trabalho febril de organização contra-revolucionária teve início então, como reação à ameaça de ocupação de fábricas (…) . Em julho, o Ministro da Guerra, com Bonomi a frente, começou a desmobilização de cerca de 60.000 oficiais nas seguintes condições: os oficiais foram desmobilizados, mas mantiveram quatro quintos do seu soldo; a maior parte deles foi enviada para os centros políticos mais importantes, com a obrigação de aderir aos fasci di combatimento; até este momento, os fasci não passavam de uma pequena organização que reunia socialistas, anarquistas, sindicalistas e republicanos favoráveis à participação da Itália na guerra ao lado da Entente. O governo Giolitti fez o maior esforço para aproximar a Confederação da Indústria e as associações rurais, particularmente as da Itália central e setentrional. Foi então que apareceram os primeiros esquadrões armados do fascismo e que se produziram os primeiros episódios terroristas (…)1.

O crescimento irresistível do fascismo só foi possível com o patrocínio das elites italianas. A reunião da Confindústria, citada acima por Gramsci, assinalou o medo das classes produtoras frente a ofensiva dos operários. A vaga revolucionária internacional não inquietava apenas a esquerda radical, em sentido inverso, insidia também sobre a burguesia, o exemplo bolchevique estava por demais próximo, por isso a iniciativa de reabilitar Giolitti, há quase uma década fora da política, porém uma personalidade com transito junto ao movimento operário local. Contudo, não bastava contar com a conivência do PSI, o medo da inépcia de um novo Kerenski era real, também não havia uma dupla Noske-Scheidemann2 para cooptar. Era necessário conter o comunismo em sua base, ou seja, nos sindicatos, nas cooperativas, nas ruas. Quem podia executar essa tarefa, visto que a repressão estatal começava se mostrar insuficiente, com carabineiros se recusando a atirar nos trabalhadores (de novo o exemplo russo, com seus soviets de soldados), eram os fasci de combatimento. Com apoio financeiro, incentivo a novos aderentes, conivência quase total do aparato jurídico e policial, o fascismo obteve um crescimento notável em poucos meses. Segundo dados do Ministério do Interior do período, em março de 1921, os seguidores de Mussolini formavam um grupo de 80.476 homens, já em outubro do mesmo ano, seus efetivos chegaram a 217.072 homens (lembrando que o acordo junto a elite empresarial foi firmado em abril)3.
A metodologia de ação dos fasci foi chamada de squadrismo, que consistia em invadir sindicatos e associações laborais, em bandos compostos por centenas de homens armados com porretes, com direito a espancamentos e assassinatos. Após a associação ao Estado, tais missões também passaram a contar com armas de fogo e granadas. Cidades inteiras foram tomadas de norte a sul do país, sindicatos definitivamente ocupados, prefeituras e demais departamentos públicos invadidos e incendiados, nas cidades governadas pela esquerda. Manifestações e protestos dos trabalhadores eram dissolvidos a bala, em poucos meses milhares de pessoas foram assassinadas, torturadas, mutiladas. Mais uma vez recorremos a Antonio Gramsci como testemunho acerca de todo esse estado de barbárie:

A posição política do fascismo é determinada pelas seguintes circunstâncias elementares:

  1. Os fascistas, em seis meses de atividade militante, tornaram-se responsáveis por uma pesadíssima bagagem de atos criminosos, que só permanecerão impunes enquanto a organização fascista for forte e temida.
  2. Os fascistas só puderam realizar suas atividades porque dezenas de milhares de funcionários do Estado, em particular os organismos de segurança pública ( delegados de polícia, guardas-régias, carabineiros) e da magistratura tornaram-se seus cúmplices morais e materiais. (...)
  3. Os fascistas dispõem, disseminados por todo o território nacional, de depósitos de armas e munições em quantidade suficiente para formar um exército de pelo menos meio milhão de homens.
  4. Os fascistas organizam um sistema hierárquico de tipo militar, que encontra seu coroamento natural e orgânico no Estado-Maior4.

A panorama se tornou tão favorável a Mussolini, que o mesmo achou que havia chegado a hora de constituir o seu próprio partido, o PNF (Partido Nacional Fascista), em novembro de 1921. Em meados de 1921 a classe operária intentou um último ato de resistência, uma greve geral em resposta a violência da extrema-direita. Mas tal iniciativa redundou em fracasso, a essa altura o horror squadrista já era demasiado presente, a se somar ao esfacelamento da esquerda mergulhada em cisões internas. Assim sendo, a tomada do poder era só questão de tempo. O plano de Giolitti de se valer da truculência fascista para restaurar a “ordem” em seu país, e posteriormente se livrar dos mesmos, de forma maquiavélica, deu com os burros n'água. A maquina fascista se tornou um Leviatã que engoliu o próprio Estado italiano. Em outubro de 1922, uma horda de milhares de fascistas tomou conta das ruas de Roma, ninguém mais podia se antepor entre eles e o poder. A pressão das bases era fortíssima, os lugares-tenentes de Mussolini, Italo Balbo, Cesare Maria De Vecchi, Emilio de Bono e Michele Bianchi, homens curtidos na violência, insuflavam seus homens, apenas o poder de Estado lhe interessava. Nem Mussolini tinha controle sobre esses militantes, fazendo jus a seu oportunismo, permaneceu em Milão durante a ocupação de Roma, só se dirigindo a capital após chamado do próprio rei, Vittorio Emanuelle III. Em poucos dias se tornou presidente do Conselho de Ministros da Itália.


*****

Embora o fascismo, desde os seus primórdios, se apresentasse como um movimento de natureza hegemônica, liderado por um sociopata, as forças que poderiam contê-lo se deram conta deste fator tarde demais. Mesmo entre os comunistas não havia clareza sobre a real natureza de tal movimento. As derrotas na Alemanha, na Hungria, e agora na Itália, levaram a III Internacional a rever uma série de diretrizes em relação ao processo revolucionário internacional. O terceiro Congresso da IC possuiu contornos bem menos otimistas em comparação aos dois primeiros, no segundo semestre de 1920 a revolução não estava mais na ordem do dia, os comunistas deveriam agora passar a defensiva. Por isso, foi acertada a tática de frente ampla, ou seja, união de todas as forças de esquerda afim de barrar o avanço da reação. Contudo, líderes como Amadeo Bórdiga se recusavam a encarar o panorama dentro deste prisma, amparado por discursos radicais. Mesmo após a tomada de poder pelo PNF, o líder abstencionista seguia minimizando o potencial dos fascista, afirmando que o governo de Mussolini não passava de “uma mudança do pessoal governamental da burguesia”. Umberto Terracini, liderança do PCI, definia o governo dos fasci como uma “crise ministerial passageira”. E no entanto, o comando de Mussolini durou mais de vinte anos.
Antonio Gramsci, já em 1920, chamava a atenção para o potencial destrutivo do fascismo, atentando para o seu caráter classista e internacional, sem, no entanto, desvinculá-lo do Estado tradicional.

(…) O fenômeno do “fascismo” não é apenas italiano, assim como não é apenas italiana a formação do Partido Comunista. O “fascismo” é a fase preparatória da restauração do Estado, ou seja, de uma intensificação da reação capitalista, de um aguçamento da luta capitalista contra as exigências vitais da classe proletária. O fascismo é a ilegalidade da violência capitalista, enquanto a restauração do Estado é a legalização desta violência: é uma conhecida lei histórica a de que o costume precede a lei5.

Porém, a “ilegalidade da violência capitalista”, citada acima pelo comunista sardo, se consubstanciou no Estado burguês fascista.
Segundo Nicos Poulantzas, os teóricos da III Internacional em conjunto não foram capazes de analisar com clareza o fenômeno do fascismo, associando-o ao atraso econômico, sendo por isso impossível o advento de tal regime em países de capitalismo avançado – Alemanha. O economicismo, tão marcante na II IC, não foi superado pela Terceira Internacional, relatórios da organização antecipavam que “o fascismo não podia durar, no sentido próprio do termo: nesta concepção evolucionista da “crise econômica” e da iminência abstrata da revolução, ele não poderia representar uma viragem ou uma etapa da luta de classes”. E mais, “o fascismo, simples episódio passageiro no processo mecânico da crise econômica – evolução–catástrofe–revolução, desmoronar-se-ia de algum modo por si mesmo. Assim sendo, o breve fascismo se converteu num “momento positivo do lado mau da história”6, antessala da Revolução.
Uma união de todas as forças de esquerda, somadas ao liberalismo progressista e setores sadios do clero, poderia ter feito frente ao fascismo, ao menos era assim que tanto Gramsci e as diretrizes do III Congresso da IC ponderavam. Contudo, tal tática se demonstrou inaplicável tanto na Itália quanto nos demais países da Europa. Na península, o principal opositor a essa diretriz foi Amadeo Bórdiga, radicalmente contrário a qualquer acerto com os social-democratas. As feridas do biênio vermelho ainda se encontravam abertas. Essa animosidade frente a social-democracia levará a resolução do social-fascismo, ratificada no sexto Congresso da IC, em 1928, agora sob a batuta de Stalim. O resultado mais marcante dessa visão será a ascensão do nazismo na Alemanha. A essa altura, Gramsci se encontrava encarcerado na Itália, e Mussolini caminhava em direção a constituição de um Estado totalitário, sem adversários que pudessem ameaçar seus projetos.


A guisa de conclusão, consideramos o fascismo uma medida de emergência do Estado burguês ao se sentir ameaçado. De fato, o fascismo italiano representou algo de novo, uma ditadura burguesa de novo tipo. Embora Mussolini, fazendo jus a sua velhacaria, tenha se afastado do fascismo puro – permeado por um anticapitalismo romântico e disposto a refundar o Estado – e se imiscuído junto as forças da velha ordem, seu regime de fato foi algo jamais visto na história do Estado Nacional moderno. O fascismo foi o tampão perante a vaga aberta pela União Soviética, pôs fim a maior onda revolucionária da História, nunca o capitalismo se encontrou tão assediado quanto nessa fase. De tão eficiente, o fascismo foi expandido para o mundo inteiro, sua elasticidade teórica permite que tal sistema seja adaptado a qualquer realidade nacional. Produto direto da agudização das lutas de classe, o advento do fascismo não pode ser descolado de sua conjuntura macroeconômica, crise, luta de classe e Revolução caminham juntas, mas nem sempre essa gradação se completa, entre esses conceitos se encontra o fascismo, remédio amargo da burguesia. Entretanto, essa mesma burguesia jamais pensará duas vezes para recorrer a extrema-direita quando se encontrar sob ameaça, real ou superestimada, vão-se os anéis, ficam os dedos. O fascismo também serve de carta na manga para as classes dirigentes, nos eventos de 1968, frente a uma nova ofensiva da esquerda, seu fantasma foi evocado. Em países como Alemanha e Itália, sobretudo nesta, agentes do velho squadrismo foram reabilitados para mais uma vez direcionar seu potencial de violência aos comunistas. O fascismo é o espectro mal a rondar a civilização, não apenas europeia, mas mundial.



1
Com respeito a “ordem” que o Ministro da Guerra nomeado por Giollitti, Ivañoe Bonomi, teria dado aos oficiais desmobilizados para aderirem aos fasci, Robert Paris comenta uma circular do Estado-Maior maior italiano que “convidava os oficiais desmobilizados a aderir aos fasci”. Para relato de Gramsci, GRAMSCI, Antonio. Op. Cit. p.125; para afirmações de Robert Paris; PARIS, Robert. As Origens do Fascismo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1993. p.78

2Líderes social-democratas alemães, responsáveis pela repressão feroz ao levante espartaquista em 1919

3 GENTILE, Emílio; FELICE, Renzo de p. Op. Cit. p. 25

4GRAMSCI, Antonio. Op. Cit. p. 65-66

5GRAMSCI Antonio. Escritos Políticos, vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. p.429

6POULANTZAS, Nicos. Op. Cit. p. 50-52





Bibliografia


ESCORSIM, L. Mariátegui: Vida e Obra. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2006.

GENTILE, E.; FELICE, R. A Itália da Mussolini e a Origem do Fascismo. São Paulo: Ícone Editora, 1988.

GRAMSCI, A. Escritos Políticos, vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2004

_________ Escritos Políticos, vol. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2004

MARX, K. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Centauro, 2008.

PARIS, R. As Origens do Fascismo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1993.

POULANTZAS, N. Fascismo e Ditadura. São Paulo: Martins Fontes. 1978

SANTOS de OLIVEIRA, S. L. “O Grupo (de Esquerda) de Osasco. Movimento estudantil, sindicato e guerrilha (1966-1971)”. Dissertação de mestrado: FFLCH-USP, 2011.

SECCO, L. Gramsci e a Revolução. São Paulo: Alameda, 2006.

TASCA, A. El Nacimiento del Fascismo. Barcelona: Ediciones Ariel, 1967.

TOGLIATTI, P. Lições sobre o fascismo. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1978.



* Artigo escrito por Sérgio Luiz Santos de Oliveira, doutorando em História





Nenhum comentário:

Postar um comentário