sábado, 20 de agosto de 2011

'Médicos fumam, enfermeiras fumam, juízes fumam, até advogados fumam'



Um homem negro solta baforadas de um cachimbo, acocorado no meio de uma plantação de maconha. A imagem desafiadora compôs a capa do primeiro álbum solo do jamaicano Peter Tosh (1944-1987). O ano era 1976. A gravadora multinacional que o contratara, Columbia/CBS (atual Sony), bancou a imagem transgressora, francamente fora-da-lei, e ganha dinheiro até hoje com a colheita. 



Peter Tosh canta 'Legalize It' ao vivo:
 


 



Passados 35 anos, a erva continua ilegal, a despeito das reivindicações de Peter, expostas desde a capa e o título (Legalize It) do disco. Mesmo ilegal, a erva é um sucesso: a Sony brasileira acaba de colocar no mercado a enésima reedição de Legalize It, lado a lado com a de seu sucessor, Equal Rights, de 1977. Ambos os títulos ganham edições alentadas, em álbuns duplos repletos de versões demo, mixagens alternativas, remixes e sobras de estúdio da obra solo inicial de um dos inventores do reggae. Com exceção de sete sobras de estúdio das gravações de Equal Rights, os bônus não passam muito de cosméticos – o Peter Tosh essencial está contido mesmo é nas 17 gravações originais dos dois velhos LPs. E muito da imponente história do reggae está condensada nessas poucas linhas, e nos tempos e lugares ao redor delas. Peter havia sido por dez anos uma das pernas do tripé fundamental que sustentava o grupo jamaicano The Wailers – as outras duas eram Bunny Livingstone (ou Wailer) e um tal Bob Marley, que, como costuma acontecer frequentemente na mitologia do pop, desembestara para o sucesso mundial partir de 1973, o mesmo ano em que o parceiro Peter caiu fora da banda.


Naquele ano, os Wailers lançaram Catch a Fire e Burnin’, seus dois primeiros álbuns por uma gravadora de alcance intercontinental, a Island. Em 1974, Natty Dread sairia já creditado a “Bob Marley & The Wailers”, com o hit mundial “No Woman, No Cry” e sem Bunny e Peter entre os tais Wailers. O mundo ficara pequeno demais para acolher num mesmo espaço os três ex-companheiros.

  
Capa de 'Legalize It', de Peter Tosh (1976) 

Peter só deslancharia dois anos mais tarde, possivelmente favorecido pela percepção da Columbia de que, não, o mundo não era pequeno demais para dois (ou mais) grandes heróis jamaicanos de reggae. Peter debutou preparado para o confronto, indo ao nervo exposto do tabu “drogas”, a bordo deLegalize It, o disco, e (principalmente) “Legalize It”, a canção. “Alguns chamam de ‘a erva’/ alguns chamam de marijuana/ alguns chamam de ganja/ legalize/ não critique”, estampava a letra, já acostumando plateias planeta afora para a prosódia toda particular, agressiva, de gueto, de Peter Tosh. “Médicos fumam/ enfermeiras fumam/ juízes fumam/ até advogados fumam”, ele seguia, denunciando o óbvio que a casca da sociedade não gostava de admitir. Legalize It adota o reggae como gênero de protesto por excelência, não só pela faixa-título como por “Whatcha Gonna Do”, de revolta contra as prisões por porte de maconha que músicos ao redor do mundo cansavam de conhecer à época, ou pelo mantra religioso “Igzabeher (Let Jah Be Praised)”, que acasalava o profano e o sagrado, sob os ditames do rastafarianismo, equiparando o consumo da marijuana a vivências religiosias e espirituais. 

O libelo pela legalização da maconha é o que celebriza o álbum até hoje, mas é curioso notar que a maioria das faixas girava menos ao redor desse tema que de motivos amorosos – ou melhor, de sua ausência. “No Sympathy”, “Why Must I Cry”, “Till Your Well Runs Dry” e a cruamente misógina “Brand New Second Hand” versavam, todas, sobre a descrença do narrador no amor, até mesmo na amizade. Assim como em 2011 nosso Criolo afirma que “Não Existe Amor em SP”, 35 anos atrás o garoto jamaicano de periferia elaborava versos tipo “nunca vou me apaixonar de novo/ porque só meu coração sente a dor”, como se julgasse que não viera ao mundo talhado para essa espécie de sentimentos. Curiosamente, o fortíssimo segundo álbum desviava a rota tanto da verve maconheira como daquela das dores de desamores. Equal Rights era ainda mais ferino e certeiro na mira da música como veículo de politização e militância política e social. “Get Up, Stand Up”, uma parceria com Bob lançada antes pelos Wailers, no álbum Burnin’, expressa política de direitos civis dos pés à cabeça, à moda do funk militante do patrono norte-americano James Brown: “Levante-se, fique de pé/ exija os seus direitos”. Dirigida aparentemente a um homem branco, de elite, “Downpressor Man” segue a reta, no nervo: “Você pode correr, mas não consegue se esconder”. 

'Get Up, Stand Up', na voz de Peter Tosh
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Em “I Am That I Am”, o narrador busca nas artérias a altivez: “Eu sou o que eu sou, eu sou, eu sou, eu sou/ não subestime minha habilidade/ não defina meu caráter/ não minimize minha autoridade/ é tempo de você reconhecer minha qualidade”. A seguir, “Stepping Razor” trafega pela violência e faz uma declaração de guerra: “Se você quer viver/ trate-me bem/ (...) não vê meu tamanho?/ eu sou perigoso”. O quarto reggae é a faixa-título, em luta frontal, explicitamente bélica, por “direitos equânimes”: “Todo mundo está chorando por paz/ ninguém está chorando por justiça/ eu não quero paz/ eu preciso de direitos iguais/ e justiça” e, adiante, “todo mundo está falando sobre crime/ diga-me, quem são os criminosos?/ eu não consigo ver”. 

  
Capa do disco 'Equal Rights', de Peter Tosh 

A próxima é “African”, que inaugura no disco (e na obra de Peter) a consciência e a militância antirracista: “Não importa onde você nasceu/ se você é um homem negro/ você é um africano”. Após a única referência explícita à maconha, na novamente religiosa “Jah Guide”, o disco termina supurando a pústula racista, em “Apartheid” – futuras lendas vivas do reggae, os músicos Sly Dunbar e Robbie Shakespeare, então integrantes de sua banda, aparecem no encarte da reedição contando que nem sequer sabiam o que significava o termo Apartheid, até gravarem a canção homônima com Peter. “Nós vamos lutar, lutar, lutar contra o Apartheid”, diz a letra, com toda a simplicidade do mundo. Na capa warholiana de Equal Rights, Tosh aparecia multiplicado por seis (ali, ele era nós, os que queríamos – queremos – lutar contra os apartheids). E guarnecido por uma boina militar, referência explícita a Che Guevara. Tratava-se de um disco temático, que não deixava brecha para trégua ou amolecimento. Surpresa nenhuma, seria o último trabalho de Peter pela Columbia – a partir do terceiro álbum, Bush Doctor, ele viraria artista do selo Rolling Stones, dos branquelos Mick Jagger, Keith Richards e trupe. Peter manteve sucesso substancial, mas bem mais modesto que o do amigo de infância Bob Marley (que morreria em 1981, de câncer). Viveu apenas dez anos mais a partir de Equal Rights, e foi assassinado num assalto a sua casa, do dia 11 de setembro, 14 anos antes de as Torres Gêmeas tornarem hollywoodiana a data de sua morte. 



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