domingo, 24 de julho de 2011

O fracasso da OTAN na Líbia


Depois de três meses e meio de bombardear e fornecer armas a vários grupos de oposição a Kadafi, o fracasso da NATO, nos esforços para promover “mudança de regime” na Líbia, já salta aos olhos. 
A história está cheia de exemplos em que uma tempestade de milhares de bombas e mísseis jamais conquistou o apoio de civis-alvos dos tiros.
A história está cheia de exemplos em que uma tempestade de milhares de bombas e mísseis jamais conquistou o apoio de civis-alvos dos tiros. FotoBRQ Network/Flickr
Claro que os comandantes da NATO ainda esperam que alguma bala perdida consiga matar Kadafi, mas, até agora, Kadafi continua onde sempre esteve, os líbios não se levantaram contra ele e, de fato, são as potências que compõem a NATO que brigam furiosamente entre elas.
As matérias que vêm da Turquia sobre as ‘decisões’ do Grupo de Contato da NATO para a Líbia têm uma aura surreal. A secretária de Estado dos EUA e Hague, ministro de Relações Exteriores britânico, falam em tom solene sobre o compromisso de ambos com a “mudança de regime” e com fortalecer os laços com o Conselho de Transição em Bengazi.
Mas o fracasso de toda a ‘operação NATO’ já é tema para historiadores – perfeito sinal de alerta sobre os perigos dos delírios políticos a serviço do “intervencionismo humanitário”, da insuficiência dos serviços de inteligência, das fantasias sobre a eficácia da guerra aérea e da mais impressionantemente mentirosa cobertura de imprensa de que se tem notícia na história contemporânea.
Considere-se o primeiro-ministro britânico David Cameron. Cameron deve agradecer a Rupert Murdoch e até a Andy Coulson, já atirado aos tubarões, por um irônico favor que lhe prestam. O espantoso erro, a obstinação de Cameron, que insistiu em contratar e manter Coulson, ex-editor do jornal News of the world, no posto de seu principal conselheiro ‘midiático’, está ocupando tão completamente as manchetes de toda a imprensa britânica nos últimos dias, que a opinião pública está sendo levada a esquecer outro espantoso erro de Cameron. E assim, Cameron vai-se livrando do ridículo e do escárnio, também no plano internacional.
Quando Cameron correu, com o presidente Sarkozy da França, no início de março, para comandar o ataque contra Kadafi, nada parece ter perturbado a autoconfiança cega do primeiro-ministro. Foi como se a cegueira, as trapalhadas e os erros de Blair no Iraque, que depois se repetiram incansavelmente por vários anos, jamais tivessem existido.
Deve-se pressupor que Cameron, como Sarkozy, Clinton e Obama receberam informes, de seus serviços de inteligência, sobre a situação na Líbia. Será que nenhum daqueles espiões foi capaz de ver que Kadafi poderia ser inimigo muito mais duro de derrotar que os presidentes da Tunísia ou do Egito? Que mobilizaria apoio popular a seu favor em Trípoli e no oeste da Líbia, regiões em que há oposição histórica contra Bengazi e o leste do país? É grave, se não receberam esses informes. Mas é ainda mais grave, se receberam e não lhes deram qualquer atenção.
A imprensa ocidental – e a al-Jazira não fez melhor serviço – pouco ajudou. As ‘notícias’ iniciais, de que Kadafi estaria cometendo “genocídio” contra o próprio povo, ou que teria ordenado estupros em massa, sempre foram simples reprodução de boatos jamais confirmados ou dos panfletos de propaganda produzidos em Bengazi. Hoje se sabe que foram decisivos, só, para comprometer de vez a credibilidade de organizações como Amnistia Internacional e Human Rights Watch.
Qualquer ambição que o Tribunal Internacional de Justiça da ONU ainda tivesse, de ser vista pela opinião pública como tribunal de justiça imparcial, ficou definitivamente comprometida, agora que já se viu que aquele Tribunal Internacional pôs-se como braço ‘jurídico’ da NATO, a emitir mandados de prisão contra Kadafi e seus aliados próximos, no momento em que a agenda de propaganda da NATO assim lhe ordenou.
Jornalistas em Bengazi atuaram como garotos-propaganda do que, desde o início, sempre foi bando desorganizado de facções ou grupamentos políticos. Em Trípoli, os correspondentes só fizeram pintar caricaturas as mais horrendas de Kadafi, temerosos de desagradar os editores se oferecessem matérias equilibradas, que os editores considerariam “soft”. Kadafi tinha de continuar como sempre o mostrou a imprensa ocidental, ao longo de 40 anos de governo: a personificação ‘do mal’. Os norte-americanos belicistas e pró-guerra de sempre exultaram porque, afinal, caía-lhes no colo, uma “guerra justa”. E puseram-se a comemorar os bombardeios da NATO, tanto quanto a ‘clarividência’ e o ânimo ‘democrático’ e a ‘pureza’ revolucionária da gangue de Bengazi.
A história está cheia de exemplos em que uma tempestade de milhares de bombas e mísseis, dos quais sempre se louvam os padrões de “acuidade e perfeição” dos tiros, jamais conquistou o apoio de civis-alvos dos tiros. Não aconteceria diferente, é claro, mesmo que cada bomba e cada míssil trouxesse o carimbo-certificado de “auxílio humanitário” e “intenções democráticas”.
Trípoli tem visto manifestações-monstro contra a NATO. A Líbia tem população de cerca de 6 mi de habitantes, 4 mi em Trípoli. Kadafi visita as defesas da cidade em jipe aberto. Os comitês de defesa da cidade receberam grande quantidade de fuzis AK-47 e estão treinados para defender-se. Todos esses líbios terão sido forçados por Kadafi a se mobilizar? Pouco provável.
Essa semana, a imprensa ocidental, excitada, noticiou que alguns prisioneiros estariam denunciando Kadafi. Ora! Se você fosse prisioneiro, com uma arma apontada para sua cabeça, você juraria fidelidade ao objeto preferencial do ódio de quem o ameaça? Ou murmuraria qualquer coisa que pudesse adiar o tiro fatal? Esse jornalismo faz vergonha a qualquer jornalismo. Quem são os “mercenários negros”? Os que são pagos para matar líbios pró-Kadafi, ou os líbios do sul, que nasceram negros e lutam hoje nas milícias pró-Kadafi?
Outro item, na lista de erros de avaliação da NATO, foi a desqualificação das acusações que lhe foram feitas por líderes africanos, russos, e até por países membros da NATO (como a Alemanha), de que duas resoluções do Conselho de Segurança da ONU aprovadas em fevereiro e depois no dia 17 de março – para proteger populações civis – estavam sendo abertamente distorcidas a favor dos esforços para matar Kadafi e instalar no poder na Líbia a gangue do “governo provisório” de Bengazi.
No início de março, Sarkozy, que despencava nas pesquisas como candidato à reeleição, acreditou no que lhe disse o “novo filósofo” Bernard-Henri Lévy, que estivera em vilegiatura por Bengazi dia 6 de março, que a Líbia e todo seu petróleo estariam ‘no ponto’ para ser confiscados. Dia 11 de março, Sarkozy, impulsiva e precipitadamente, reconheceu a gangue de Bengazi como legítimo governo da Líbia e pôs-se a esperar, cheio de fé, o colapso de Kadafi.
Em brilhante e hilária avaliação da derrota da NATO, Vincent Jauvert do Le Nouvel Observateur noticiou recentemente que os serviços de inteligência franceses garantiram a Sarkozy e ao seu ministro Juppe, do Exterior, que “imediatamente depois do primeiro ataque [aéreo], milhares de soldados de Kadafi desertarão”[1]. Também previram que os ‘rebeldes’ rapidamente ocupariam Sirte, cidade natal de Kadafi e o obrigariam a fugir do país. Esse ‘informe de segurança’ chegou a ser ‘noticiado’ em tom triunfante pelas potências da NATO, que ‘noticiaram’ que Kadafi já fugira para a Venezuela. Sempre se pode optar decididamente pela Grande Mentira, como instrumento de propaganda. Mas não, por favor, quando a coisa possa ser desmentida, como aconteceu nesse caso, passadas 24 horas!
“Subestimamos Kadafi” – disse um funcionário francês ao Nouvel Observateur. Kadafi preparou-se, durante 40 anos, para uma invasão à Líbia. Nunca imaginamos que responderia tão rapidamente. Ninguém jamais esperou, por exemplo, que, para transportar soldados e baterias de mísseis, Kadafi conseguiria comprar rapidamente centenas de pick-ups Toyota no Niger e no Mali. Foi golpe de mestre: os caminhões e pick-ups são idênticos aos que os rebeldes têm. A NATO está paralisada. É obrigada a adiar missões. Antes de qualquer tiro, é preciso identificar o alvo, saber se não é caminhão é rebelde ou não. ‘Temos pedido que os rebeldes identifiquem seus veículos, com alguma marca nos capôs’ – disse um soldado, mas nunca sabemos com certeza. O pessoal lá é muito desorganizado...’”
Dado que o colapso não aconteceu como previsto na agenda, o governo francês confirmou, no início de julho, que está enviando, por mar e por paraquedas, mais armas para os grupos ‘rebeldes’. Pode-se assumir que os britânicos também estejam pondo em andamento suas próprias operações clandestinas – embora a captura da unidade SAS/MI6 por fazendeiros líbios não seja bom augúrio.
A coalizão da NATO está desmanchando-se, embora não haja notícia disso na imprensa dos EUA. O ministro francês da Defesa, Gerard Longuet, em entrevista no final de semana a uma rede francesa de televisão, disse que a ação militar contra a Líbia fracassou. E que é hora de iniciarem-se negociações diplomáticas: “Agora, temos de nos sentar em torno de uma mesa, e negociar. Pararemos de bombardear a Líbia no instante em que os líbios começarem a conversar entre eles e todos os exércitos, dos dois lados, retornarem às bases”.
Longuet sugeriu também que Kadafi provavelmente permanecerá na Líbia “em outra ala do palácio, com outro título”.
Se as espantosas palavras de Longuet visaram só ao público francês, às vésperas de votação importante na Assembleia Nacional, ou não, mesmo assim é evidente que foram um choque para Cameron e Clinton. Para encobrir a evidência de que há divisão dentro da NATO, Cameron e Clinton apressaram-se a divulgar ‘declarações’ em que dizem que não há alteração no objetivo de “mudança de regime”, e que a partida de Kadafi seria condição sine qua non – exatamente como a gangue de Bengazi quer.
Mas Berlusconi, na Itália à qual chegam dezenas de milhares de líbios que fogem da guerra, já começou a dizer que sempre se opôs à “aventura da NATO na Líbia” desde do início. Talvez não renove, no próximo outono, os acordos vigentes para manter em território italiano bases das potências da NATO. A Alemanha nunca apoiou entusiasticamente a tal ‘aventura da NATO’. França e Grã-Bretanha nutriram, sim, esperanças de relações militares bem íntimas, mas essa esperança também logo se desmanchou, pelas razões de sempre – inércia, mútuas desconfianças e simples incompetência.
As desconfianças de Sarkozy sobre Alemanha e Turquia parecem ter sido tão intensas, segundo o Nouvel Observateur, que ele chegou a pedir que os representantes de Turquia e Alemanha fossem afastados da estrutura de comando da NATO, sob o argumento de que poderiam boicotar a guerra, uma vez que eram bem conhecidas as restrições que Berlin e Ankara faziam a toda a operação na Líbia. Pelo estatuto da NATO, se o líder supremo da NATO, um general norte-americano, e o n. 2, um britânico, tiverem de afastar-se, o comando geral da NATO passa a um general alemão. Sarkozy tentou alterar essa regra do estatuto.
Obama faz jogo duplo, forçado pelas pressões domésticas e por suas prioridades políticas. No início, a corrida rumo ao Conselho de Segurança foi iniciativa, principalmente, da secretária de Estado Hillary Clinton. No plano interno, em meados de fevereiro a popularidade de Obama atingia o fundo do poço. Falava-se de ‘presidente de um só mandato’. Clinton correu a ocupar o que viu como tentador vácuo político, já começando a alimentar esperanças de acelerar o declínio de Obama, o que a beneficiaria como concorrente potencial à presidência em 2012. Obama, lutando já contra o rótulo de ‘pato manco’, autorizou (do Brasil, onde estava) a operação da NATO, autorização que, hoje, enfrenta acusações de inconstitucionalidade. Imediatamente depois disso, Clinton anunciou que considerava a possibilidade de abandonar a política nacional depois de 2012.
Em termos de equipamento, os EUA têm sido crucialmente importantes. Segundo um general francês ouvido pelo Le Nouvel Observateur,
“33 dos 41 aviões para transporte de tanques (Boeing 767, KC-767) usados na operação da NATO são norte-americanos, como a maioria dos Sistemas Aéreos Embarcados de Alerta e Controle (Airborne Warning and Control System, AWACS), todos os aviões-robôs tripulados a distância (drones) e 100% dos mísseis anti-radar e kits de orientação a laser para bombas. E não é tudo. Os principais recursos de comando e controle da NATO, como a banda gigantescamente larga, para transmitir todos os tipos de dados, também são norte-americanos.”1
O Diretor de Inteligência Militar, general Didier Bolelli, revelou que mais de 80% dos alvos dos pilotos franceses que operam na Líbia são alvos definidos pelos EUA. “Dão-nos o mínimo indispensável, só para que não percebamos que não somos aliados” – diz um diplomata.
Quem ainda se lembrar da debacle de Suez, em 1956, talvez ainda lembre que Eisenhower ordenou que as forças britânicas, francesas e israelenses simplesmente desistissem da tentativa de derrubar Nasser. Talvez estejamos assistindo a um ‘replay’, menos explícito, daquela demonstração conclusiva da dominação dos EUA, pós-II Guerra Mundial. Dessa vez, o governo Obama está afirmando que qualquer esforço para afirmar o controle europeu sobre o Mediterrâneo dará em nada.
Antes de aposentar-se, o ex-Secretário de Defesa dos EUA, Robert Gates, aproveitou um discurso em Bruxelas, para torcer a faca na ferida: “A mais poderosa aliança militar da história (...) luta em operação contra regime mal armado, em país de população rala – e muitos aliados já estão ficando sem munição, pedindo que os EUA, mais uma vez, façam a diferença”. E arrematou, em tom de ameaça: “Futuros presidentes dos EUA (...) talvez não aceitem que ainda valha a pena o que hoje os EUA obtêm como lucro de seu investimento na NATO”.[2]
Ainda que Obama apóie sinceramente a troca de regime na Líbia, a temperatura política nos EUA não favorece nenhum tipo de “surge” na Líbia – imensamente caro e em oposição ao clima reinante na opinião pública –, que parece ser a única alternativa que hoje resta, depois do fracasso da campanha de bombardeio intenso.
Não há qualquer sinal de que o líder dos Trabalhistas britânicos Ed Miliband, tão ferozmente entusiasmado, hoje, para assumir o comando do trem anti-Murdoch, tenha a clareza política de denunciar Cameron pela farsa na Líbia. O mais provável é que, como Cameron, abrace as “intervenções humanitárias”. Talvez diga, no máximo, que Cameron não bombardeou suficientemente a Líbia.
Em resumo, a esquerda deve festejar que operação prevista para ser simples ação colonialista de detonar e ocupar a Líbia, esteja hoje em cacos; que tenha gerado graves danos à credibilidade da NATO e à farsa de que a NATO teria algum respeito pela lei internacional. Essa jaula de canguru que é a Corte Internacional de Justiça [ver aqui (NT)], também foi ainda mais desacreditada; outro motivo de festa, para as forças progressistas.
E quanto ao futuro? O ar está denso de especulações sobre acordo que já teria sido firmado, salpicado de desejos delirantes de norte-americanos e britânicos de que Kadafi esteja à beira de cair, de que esteja sem combustível, de que a gangue de Bengazi estaria ‘apertando o cerco’ a Trípoli, de que os russos encontrarão meio para salvar a reputação de todos. Melhor apostar na conclusão segundo a qual, passados quatro meses e meio, a NATO e os intervencionistas estão sendo derrotados.
Acrescentem-se a isso os problemas pelos quais passa também Rupert Murdoch, e não há dúvidas de que os progressistas do mundo têm muito o que legitimamente comemorar.



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